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Existe um “Método Científico”?Is there a Scientific Method?

Atualizado: 1 de jun. de 2021

Fernando Portela Câmara 1,2

1Diretor do Instituto Stokastos

2Vice-Presidente da Associação Brasileira de Neuropsiquiatria



Summary.

The scientific method is an idealization of the scientific discovery process as the application of analysis and planning methodologies. In fact, it is a process of intelligent competition of hypotheses coupled with a creative imagination, involvement, exchange of informations that culminate in a productive insight. Platt called this strong inference. Key words: Strong inference, science, knowledge.


RESUMO

O método científico é uma idealização do processo de descoberta científica como aplicação de metodologias de análise e planejamento. Na verdade, trata-se de um processo de competição inteligente de hipóteses aliado a uma imaginação criativa, envolvimento, troca de informações, que culmina num insight produtivo. Platt chamou isso de forte inferência.


Palavras-chaves: forte inferência, ciência, conhecimento.


INTRODUÇÃO

Em filosofia método é o caminho para se chegar à verdade. Muita gente pensa que “método científico” é um processo infalível para se fazer ciência e descobertas científicas. Confunde-se método com metodologia. “Todo cientista ao se aposentar escreve um livro sobre método científico”, escreveu Heinz Pagels (1988), uma idealização de cientistas e professores que querem passar o entusiasmo de uma vida acadêmica rica para seus alunos. De fato, “método científico” é algo bastante vago e com diferentes significados segundo a opinião e a experiência dos que lidam com o assunto. Há muitos livros sobre o “método científico”, e ao que parece, nenhum deles produziu grandes cientistas, e também não parece que grandes cientistas tenham seguido tal “método” apregoado em manuais.


DISCUSSÃO E CONCLUSÃO

Quem melhor abordou este assunto foi o biofísico John Platt (1964), da Universidade de Chicago. Para ele, quando se fala em “método científico” subentende-se com isso uma metodologia e procedimentos que, se seguidos à regra, resultará em descobertas infalíveis. O erro, diz ele, está nessa concepção, pois na verdade o que faz as hipóteses científicas é a imaginação criativa do cientista e como ele aplica o seu pensamento na investigação de um dado problema. Platt sugeriu que usássemos a expressão “método da forte inferência” para caracterizar o que seja uma investigação cientifica. Ele mostrou que sempre que lemos um trabalho científico de alto nível, podemos notar que os pesquisadores partem dos seguintes princípios:

  • Primeiramente formulam diversas hipóteses sobre o que querem compreender;

  • Então planejam um experimento claro e preciso para testar as hipóteses e eliminar algumas delas;

  • As hipóteses selecionadas são submetidas a outros experimentos para esclarecer questões obscuras e detalhes que ajudarão a ampliar a compreensão do problema;

A forma como conduzem esse processo não é uma regra fixa e depende muito mais da disposição e imaginação do cientista. Qualquer questão, seja qual for o campo do conhecimento, que possa ser submetida a uma forte inferência, passa a ser uma questão cientifica.


O método da forte inferência tem como ponto objetivo essencial excluir as diferentes hipóteses alternativas restringindo-as a poucas. Se provarmos que esta ou aquela hipótese não se sustenta à luz das evidências obtidas nos experimentos cruciais, elas perdem seu valor. As que permanecerem serão investigadas com novos experimentos e revisadas a partir de novos achados. Muitos cientistas gostam de comparar o processo da descoberta científica a uma investigação criminal, e por isso gostam de denominá-lo de “método de eliminação de suspeitos”. De fato, na investigação inicial de um crime o investigador seleciona vários suspeitos e então, conforme o álibi de cada um e as evidências que vão surgindo, elimina os menos prováveis. Prosseguindo na investigação, ele formula novas hipóteses reexaminando a cena do crime, checando antigos e novos testemunhos e buscando novas evidências, eliminando mais suspeitos até restar o suspeito com maior número de evidências incriminatórias. Tudo que o investigador precisa é colocar o suspeito mais provável na cena do crime, criando um modelo plausível para o ato investigado. O sujeito será julgado segundo o modelo proposto pelo investigador, e a menos que tenha um bom advogado que inviabilize este modelo, ele será condenado pelas evidências se a suspeita estiver acima de toda dúvida razoável. Como nem o juiz, nem os jurados e nem os advogados estavam na cena do crime, o suspeito será julgado com base num modelo de causalidade. Da mesma maneira, o que denominamos de “verdade” em ciência não é senão o modelo mais plausível dentre todos os propostos.


O método da forte inferência foi primeiramente formulado por Francis Bacon em sua obra Novum Organum, de 1620, onde ele ensinava que para se chegar a uma descoberta, devemos “fazer hipóteses sobre como funcionam as coisas e então planejar um experimento que dê uma indicação clara sobre quais delas são falsas e verdadeiras”. Bacon, assim, recomendava chegar às hipóteses prováveis pela exclusão das que forem sendo negadas pela experiência (Bacon, 1978).


Em oposição a este princípio, o Grupo de Viena, associação de filósofos linguistas do início do século XX, autodenominados “Pensadores Lógicos”, defendia que um fato só deve ser considerado científico se a declaração sobre ele for demonstrável, caso contrário, deve ser rejeitado. Disto nasceu a exigência da prova pela verificação. Por exemplo, suponha que desejamos provar a sentença “se p acontece, então q sucede”. Se, de fato, mostramos com um experimento em que q sucede a p, então o argumento está demonstrado (“verificado”). Ora, percebe-se aqui a falácia, pois, isto não exclui a possibilidade de que uma variável oculta, k, ocorrendo frequentemente quando p ocorre, possa ser a causa real do fenômeno observado ou influenciar o resultado. Um exemplo: a afirmação de que famílias disfuncionais são causa de esquizofrenia em crianças pode ser verificado, mas não provado; afirmar que o colesterol cronicamente alto é uma causa de infarto agudo do miocárdio pode ser verificado, mas não provado. No máximo podemos afirmar que se trata de fatores de risco, e isto não equivale em afirmar uma causalidade.


Karl Popper ampliou os pressupostos de Bacon e deu o golpe de misericórdia na teoria da verificação. Popper considerou a questão da mesma forma como fazem os matemáticos diante de uma conjectura: se na declaração “se p acontece, então q sucede” encontrarmos pelo menos um caso em que “q não sucede a p”, isto anulará completamente a proposição. Ele assim negou o valor da verificação e afirmou o valor da falsificação, isto é, podemos refutar hipóteses que demonstramos ser falsas, mas não podemos afirmar que uma hipótese seja verdadeira. De fato, há sempre a possibilidade de se descobrir uma refutação explícita, ou, como ele preferia dizer, um falseamento (Popper, 1972). Esse conceito é hoje aceito pela maioria dos cientistas, porém, ainda é demasiado formal quando estamos lidando com ciência experimental.


Consideremos a questão: é o bacilo de Koch o agente etiológico da tuberculose? Verificamos que parte das pessoas que são expostas ao bacilo, ou mesmo que são inoculadas experimentalmente, não desenvolvem tuberculose. Popper nos ensina que este falseamento da hipótese nos permite refutar a hipótese etiológica, mas como uma parte dessas pessoas desenvolve tuberculose, precisamos refinar a hipótese e propor alternativas para descobrir que fatores devem estar presentes ou ausentes para afirmar a etiologia do bacilo de Koch. Em experimentos epidemiológicos e de laboratório verifica-se uma forte associação entre o Mycobacterium tuberculosis e a doença, mas isto não é afirmar a etiologia. Partimos então da consideração de que o bacilo de Koch é uma causa necessária, mas não suficiente, e assim precisamos encontrar o que ou quais fatores concorrem para o sucesso da infecção. Declarações como “tais genes associam-se à esquizofrenia conforme observações em gêmeos” são apenas uma verificação e não uma evidência empírica.


Neste ponto, vemos que o argumento de Platt sobre o método da forte inferência é mais realista que o de Popper. Eliminar os suspeitos do crime pela forte inferência ainda é a abordagem menos problemática para se chegar à uma teoria científica. Este tipo de dinâmica é o que encontramos nos debates e apresentações em congressos, jornadas, simpósios, peer reviews etc., empreendimentos que mantém o vigor da pesquisa e da ciência.


As teorias científicas dominam por um dado período e sobre elas novos experimentos e teorias são construídas, atividade dos cientistas que mantém o consenso científico vigente. Thomas Khun denominou esse momento de steady-state das ideias científicas de paradigma científico. Esse consenso faz com que teorias emergentes não alinhadas ao paradigma vigente sejam ignoradas pela comunidade científica. Somente quando uma quantidade significativa de fatos que contradizem uma teoria vigente começa a ser notada, a sociedade científica passa a dar atenção a ela, criando a tensão necessária para uma “revolução científica”. É dessa forma, segundo Khun, que um paradigma é substituído por outro. No novo paradigma, pode acontecer que experiências anteriormente rejeitadas voltem a ser reinterpretadas à luz de novos conhecimentos, e artigos científicos que passaram despercebidos e relegados a obscuridade, sejam redescobertos como “precursores”.


Na prática, contudo, isto não significa que as ideias que saíram do foco das discussões tenham sido definitivamente esquecidas; de fato, elas não perdem sua “validade”. Um conhecimento nunca é totalmente substituído por outro. No processo da ciência, velhas ideias são assimiladas às novas, ou simplesmente as pessoas deixam de falar sobre elas e adotam aquelas que estão mais em evidência. Eles não desaparecem, e eventualmente retornam reconceitualizadas ou simplesmente saem de moda.


Como toda lógica, a ciência é construída sobre uma sintaxe, variando apenas em conteúdo e argumentos. Quando realizamos uma observação minuciosa ou planejamos um experimento estamos na verdade acessando uma base de axiomas formais que idealisticamente denominamos “natureza”, e a partir deles construímos estruturas cognitivas que são propriamente constructos linguísticos que nos levam a novos marcos conceituais. A investigação científica, com seus experimentos, controles e repetições, nos permite conduzir esse empreendimento com rigor.


O conhecimento é então a construção de uma linguagem, como colocou Valentin Turchin (1977), um constructo mental abstrato, e não o que está na Natureza. Considere, por exemplo, a equação de Schrödinger, concebida intuitivamente para descrever o átomo de hidrogênio:

Ora, esta equação é tudo que conhecemos sobre o átomo de hidrogênio, na verdade ela é o átomo de hidrogênio, como denominamos o constructo que reduz um inventário de propriedades de massa e energia do gás hidrogênio excitado a uma explicação – “mecanismo” – efetiva. A equação de Schrödinger passa a ser uma coisa em si, uma informação pura que nos permitiu, por exemplo, dominar a energia atômica, em que a função de onda Ψ, que descreve ondas de probabilidades, nada mais é que um ente abstrato, um constructo linguístico. O psiquiatra não está muito distante de Schrödinger ao formular seus constructos psicopatológicos.


A ciência não descobre “leis” da natureza e nem “decifra” a realidade, ela é uma representação efetiva do mundo numa linguagem própria em permanente construção. Todo conhecimento é linguagem, acessível a qualquer mente que esteja suficientemente familiarizada com seus códigos e constructos.


Referências

Khun T. A estrutura das revoluções científicas, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.

Popper K. A lógica da pesquisa científica, São Paulo:Cultrix, 1972.

Platt J. Strong inference. Science 1964; 146: 347-52.

Pagels H. The Dreams of Reason, New York: Simon & Schuster, 1988.

Waddington CH. Instrumental para o Pensamento, Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 1979.

Turchin VF. The phenomenon of science, New York: Columbia Univ. Press, 1977.

Bacon F. Novum Organum, São Paulo: Nova Cultural, 1978.

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